O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, na última sexta-feira (19), ajustou os termos de uma medida cautelar deferida parcialmente por ele em junho de 2019 e determinou que transexuais e travestis com identificação com o sexo feminino possam escolher entre o cumprimento da pena em presídio feminino ou masculino. A decisão representa um avanço institucional na consagração dos direitos LGBTI, uma vez que, ao reconhecer um tratamento jurídico diferenciado compatível com a identidade de gênero, combate a discriminação vivenciada pelo grupo no ambiente do cárcere, seguindo a jurisprudência do tribunal.
Relembrando o histórico do caso, a decisão se deu, inicialmente, em junho de 2019, com o ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 527 pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABLGT). Na ocasião, foram apresentadas decisões judiciais conflitantes com a Resolução Conjunta da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação n. 1, de 14 de abril de 2014[1], que questionavam o real alcance dos parâmetros legais estabelecidos para acolhimento da população LGBT nos estabelecimentos prisionais. Assim, requereu-se: (i) pela transferência das transexuais mulheres, à época encarceradas em presídios masculinos, para as penitenciárias femininas, e (ii) a possibilidade de escolha das custodiadas travestis, socialmente identificadas com o gênero feminino, do estabelecimento prisional de cumprimento de pena.
Em uma primeira decisão, Barroso deferiu parcialmente a liminar, autorizando somente que transexuais mulheres fossem transferidas para os presídios femininos. Para a situação das travestis, em contrapartida, de acordo com o entendimento apresentado, “não estava clara qual seria a melhor providência a ser adotada”, de modo que o ministro intimou os órgãos envolvidos à prestação de informações mais detalhadas.
Em julho de 2020, a ABLGT recorreu novamente ao Supremo para que a decisão proferida se estendesse também às mulheres travestis, apresentando dessa vez dois documentos que acrescentavam novas informações à instrução do processo: (i) o Relatório “LGBT nas prisões do Brasil: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento” [2], elaborado pelos Ministérios da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), e (ii) a Nota Técnica 7/2020 do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) [3], em que se constata o processo de marginalização e estigmatização do grupo diante das medidas operacionais até então estabelecidas. Em resumo, ambos os documentos relatavam a dificuldade enfrentada pela comunidade LGBTI nas penitenciárias brasileiras, reforçando o argumento de que o tratamento mais adequado para a garantia da dignidade e da sobrevivência das mulheres transexuais e travestis nos presídios seria a possibilidade de escolha do estabelecimento no qual cumprirão a pena.
Dessa maneira, em observância aos princípios constitucionais e internacionais que amparam os direitos LGBTI (os quais serão mencionados em seguida), Barroso voltou atrás de sua primeira decisão. Nesse segundo momento, reconheceu os direitos de escolha tanto das mulheres transexuais, quanto das travestis, determinando também que elas devem ser mantidas em área reservada para a garantia de sua segurança.
Base Normativa
A fundamentação jurídica do processo está pautada em duas fontes: as normas do direito constitucional brasileiro e a aplicação dos direitos humanos internacionais.
No que diz respeito ao primeiro, trata-se de assegurar alguns objetivos constitucionais de proteção dos direitos fundamentais. Esses objetivos são observados no caso das pessoas LGBTI pela compreensão de que a identidade de gênero constitui elemento essencial da personalidade, autonomia e liberdade individual. Isso implica reconhecer também, nos termos utilizados pelo ministro, “o dever dos Estados de zelar pela não discriminação em razão da identidade de gênero ou orientação sexual”.
Para tal, destaca-se o princípio da dignidade humana (art. 1º, III, CF); o direito à não discriminação por identidade de gênero ou orientação sexual (art. 3º, IV, CF); o direito à vida (art. 5º, caput, CF); e o direito à integridade física e psíquica, com vedação à tortura e ao tratamento degradante ou desumano (art. 5º, III, CF). Na jurisprudência do STF, registra-se, já havia decisões anteriores no sentido de reconhecer os direitos da comunidade de obter tratamento social compatível com sua respectiva identidade de gênero (notadamente a ADI 4.275 [4], que autorizou aos transsexuais a mudança de nome e sexo no registro civil sem prévia realização de cirurgia de mudança de sexo). Nesse sentido, no entendimento do ministro, a Constituição Federal de 1988 asseguraria às detentas transexuais e travestis o direito de escolha do local de cumprimento da pena.
No ramo dos direitos humanos internacionais, a decisão se pauta na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos Princípios de Yogyakarta [5], ambos ratificados pelo Brasil nos termos da cláusula de abertura da Constituição ao direito internacional dos direitos humanos (art. 5º, §2º, CF). A Declaração dos Direitos Humanos Universais foi instituída em 1948 e consolida os direitos básicos do ser humano, servindo, portanto, de base para a atuação do Estado. Já os Princípios de Yogyakarta foram instituídos em 2007 e firmam o entendimento da igualdade indiscriminada aos cidadãos. Ao processo em questão, esses princípios mostram-se especialmente importantes, pois englobam os direitos humanos em uma dimensão direcionada especificamente aos casos de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Portanto, reiteram a necessidade de se adotarem medidas inclusivas para a minimização do estigma e da marginalização social duplamente vivenciados pelo grupo – pela identidade de gênero e pela prisão.
[1] Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-br/composicao/cnpcp/resolucoes/2014/resolucao-conjunta-no-1-de-15-de-abril-de-2014.pdf/view> Acesso em 20 mar. 2021.
[2] Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/fevereiro/TratamentopenaldepessoasLGBT.pdf > Acesso em 21 mar. 2021.
[3] Disponível em: <https://www.justica.gov.br/Acesso/licitacoes-e-contratos/licitacoes/ministerio-da-justica/pregao/2020/collective-nitf-content/NotaTcnican.07_ASCOM.pdf > Acesso em 21 mar. 2021.
[4] Uma observação: a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275 do Supremo Tribunal Federal contou com a participação do professor de Direito Constitucional da FGV Direito Rio, Dr. Wallace Corbo, que realizou manifestação do Amicus Curiae em defesa dos direitos das pessoas trans.
[5] Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf> Acesso em 21 mar. 2021.
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